sexta-feira, março 29, 2013

insônia




arte: rafael godoy

a noite inútil não terminava nunca
o sono vinha mas os olhos não fechavam
vi assombrações nos rodapés das paredes do quarto
espremidas cor de barro querendo sair
faziam sons estranhos e se moviam
criaturas horríveis desfiguradas

se cresse talvez rezasse
mas nada saía de mim
apenas o medo um frio medonho
uma imobilidade assustadora

os seres pareciam conversar
sei que alguns saíram
e deram voltas em minha casa
rodearam minha cama
nem meus gatos apareceram
se esconderam em algum armário
se acovardaram

mas finalmente chegou a manhã
fechei os olhos
dormi com a cortina aberta
o sol sobre mim

domingo, março 24, 2013

vejo-o fazendo café

                   arte: rafael godoy


trago a vida entalhada em contas papéis livros
lembro quando via sessão da tarde e a tarde não passava nunca
hoje as tardes passam e não vejo
a noite vem como o dia
a noite é a mesma
mesmo quando você vem e diz que me ama
então olho o homem que atravessa a rua
e está com flores na mão
o livro que li há dez anos
vai ser o mesmo se o ler hoje?
vejo-o fazendo café
e a minha angústia costurada em seu pijama
e a vontade desesperada de fugir


quinta-feira, março 21, 2013

um brinde à mediocridade

hoje brindo à mediocridade que insiste em permear minha vida. brindo sem bebida, sem alegria, sem orgulho, mas com uma puta melancolia e tédio. o que salva são os amigos, o que salva é a arte de cada um. essa vida tem hora que é foda. nos consome e some com os sonhos de maneira ardilosa, mesmo os mais rasos. sou professora sim. não sei se escolhi isso, mas até hoje tenho levado e pasmem, gosto disso. porém, há muito que não acredito na educação. há muito não acredito nesse sistema podre e furado, injusto, cruel em que não se investe de fato nos profissionais dessa área, nos alunos, nas escolas. muita coisa mudou. está mudando, mas meu tempo não permite que eu tenha alguma esperança. quantas greves já fiz e ainda faço? até quando terei que lutar por uma coisa que deveria ser valorizada pra caralho. saí da rede particular por opção. o sistema é terrível. não vale a pena expor todos os aspectos, acho que a maioria tem alguma noção. mas só quem está dentro de uma sala de aula é que sabe realmente o que é essa merda toda. os alunos são a melhor parte, podem acreditar. por que permaneço? por uma questão de sobrevivência mesmo. e talvez por não saber fazer outra coisa. então, brindemos, senhores e senhoras, à mediocridade da sobrevivência. pode ser que hoje quando for à escola, alguma coisa aconteça e eu pense diferente.

quarta-feira, março 20, 2013

noite de outono




 arte: rafael godoy


as luzes da cidade acenderam a noite
e estou do outro lado

penso quando não pensava no tempo
e tinha sempre uma lua inventada

os pássaros escuros varrem os insetos
este espaço é muito vasto

o vento de outono entra no meu quarto
e não ouço o seu barulho
e sinto suas mãos frias
e a noite acesa do outro lado

me escondo no escuro
e a imensidão fica pequena

quero fechar as janelas
mas a lua é imensa
levanto-me no vento
e me curvo às suas frases de pedra

quinta-feira, março 14, 2013

esse é o dia



  arte: rafael godoy

esse é o dia que talvez corra perigo
de dar voltas sobre meu corpo e em volta da mesa
de não saber direito olhar a lua
de não achar o livro que me deu de aniversário

esse é o dia de cortar os cabelos e pintar as unhas
de não saber dizer não quando devia
de fingir acreditar em seus olhos
de olhar debaixo da cama e encontrar o pé sumido da sandália

esse é o dia de ler horóscopos rasos e tarôs
e pensar que tudo vai dar certo no fim do dia
de incendiar o corpo e gelar sorrisos
de dizer o que ontem seria mentira

segunda-feira, março 04, 2013

Encontro Desmarcado






 Toda vez que penso em ir a um médico me desespero. E hoje vou ter que ir. Não dá pra adiar o inevitável. O ano inteiro enrolo; marco, não vou, invento desculpas, qualquer uma. Mas hoje não escapo. Sou mulher, porra. Tenho que fazer aquele exame ginecológico. Esperar no consultório, ler aquelas revistas horríveis, ver mulheres entrando e saindo. Enquanto espero, imagino várias maneiras de fugir dali. Nesses devaneios, a secretária chama meu nome.Não, não, não!! Mas é tarde. Não tem mais jeito. Quando entro, a médica com todas aquelas perguntas a que não quero responder: Continua fumando, tá fazendo dieta? Parou de beber? Olha o colesterol!! Tá no limite! Precisa fazer reeducação alimentar, você está acima do peso.Tento contornar e digo que vou tentar, desta vez, vou conseguir. Então, ela diz: Pode pôr o avental e se deitar. Então, olho para a mesa, uma cama de tortura. Dois apoios para o pé, distantes, opostos. O avental é aberto na frente. Tenho que abrir, literalmente, as pernas. Fico dura como um tronco. Travo. ! Em outras situações isso é natural! Mas não é o caso! Sinto algo frio entrando em meu ventre. Aquele instrumento gelado de metal, o gel, a barriga sendo apalpada, agora os seios examinados, tocados. Finalmente, ela diz: Pode se vestir. Corro pro banheiro, ponho a roupa o mais depressa que posso. Quero sair voando dali. Tenho um encontro com um amigo, em um boteco, ali perto. Mais tarde, quem sabe, vou ter que tirar a roupa de novo, outra situação. Relembro a consulta. Talvez o encontro fique para outro dia.

(republicado)